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o que vemos, o que nos fala

altair martins

               O que vemos, o que nos fala O que vemos, o que nos fala tem sua origem no convite feito por Flávio Krawczyk, diretor do acervo artístico de Porto Alegre, e por Adriana Boff, coordenadora de Artes Plásticas da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, para escolher obras do acervo da Pinacoteca Ruben Berta e escrever sobre elas. Trata-se de um desafio: uma curadoria pela palavra. Conta também com o apoio do Instituto de Cultura da PUCRS.

            São bastante conhecidas as relações entre a literatura e as artes visuais. Esse tema da comparação entre as artes (o paragone) ganhou força durante o Renascimento, levando artistas como Leonardo Da Vinci a declararem que “A pintura é uma poesia muda e a poesia uma pintura cega" (LICHTENSTEIN, 2005, p. 19). Talvez por provocação, talvez por encantamento ou por genialidade, o poeta Carlos Drummond de Andrade, em Farewell, livro lançado postumamente em 1996, incluiu uma seção de poemas a que chamou de a arte em exposição. Aí o poeta mineiro "poetizou" brevemente obras de 27 pintores e escultores, desde o Renascimento até Cândido Portinari. Visível em Drummond é a abordagem, via palavras, do não dito nas artes visuais, o que acaba poeticamente interpretado, revelado e, lógico, recriado.

            De fato, parece que poesia pode reavivar a visualidade das obras a que se refere, mas também se potencializar a partir delas. É dizer que se trata de uma poética em trânsito, "paragônica", aspecto perceptível por Italo Calvino na Visibilidade de Seis propostas para o próximo milênio, a saber, as capacidades de evocação da imagem pelas palavras a partir da cultura e da experiência sensível:

Digamos que diversos elementos concorrem para formar a parte visual da imaginação literária: a observação direta do mundo real, a transfiguração fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus diversos níveis, e um processo de abstração, condensação e interiorização da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento. (CALVINO, 1990, p. 110)

            Para esta exposição, o ponto de partida foi Didi-Huberman (O que vemos, o que nos olha). Buscou-se estabelecer o diálogo possível entre a imagem e seus ecos linguísticos, ou “linguagéticos”, no dizer do semiólogo Louis Marin: propor diálogo entre o visível e o suscetível, entre os significantes visuais e verbais que se entrelaçam toda vez que olhamos uma imagem e toda vez que lemos um texto. Didi-Huberman explicita que, dentro da imagem, discursos competem entre si, e as conexões de sentido fazem “de um simples plano ótico, que vemos, uma potência visual que nos olha na medida mesmo em que põe em ação o jogo anadiômeno [a partir de Vênus anadiômena, “a que sai das águas”], rítmico, da superfície e do fundo, do fluxo e do refluxo, do avanço e do recuo, do aparecimento e do desaparecimento” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 33). Logo, a imagem de arte se abre em tautologia (o que é evidente aos olhos e que se “colhe” da imagem) e crença (o que é essencialmente da ordem da cultura, a desmatéria com que preenchemos a imagem). Ora, se a imagem também fala, é preciso escutá-la: captar suas vozes num diálogo infinito. Não se trata de dizer o que as imagens dizem, mas de dar vazão aos seus possíveis conteúdos linguísticos, buscando, em verso, dar corda às suscitações visuais. O resultado são 20 poemas acerca de 20 obras do acervo da Pinacoteca Ruben Berta, tendo como base uma escolha quase alheia à historiografia, que responde ao que as imagens puderam falar: sobre seu contexto artístico, sobre si mesmas. As obras, num escopo do séc. XIX ao XX, passando por clássicos desde Pedro Américo, Almeida Júnior e Di Cavalcanti às revoluções de Mário Gruber, Vilma Pasqualini e Tomie Ohtake, acabam por ilustrar que uma imagem exige que atentemos às suas referências intertextuais, leituras da própria crítica e da história das obras e dos artistas. Tudo vale: informações, estética individual e coletiva.

           Cabe dizer, ainda, que tanto a imagem visual é irredutível ao discurso verbal quanto as palavras são matéria de outra ordem, uma ordem que não se limita ao descritivo das impressões visuais. Por isso, longe do rigor de um trabalho científico, o resultado esperado é o deleite, como o trabalho artístico a que a palavra aqui se destina.

Altair Martins

Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Farewell. Rio de Janeiro: Record, 1996. CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo, Editora 34, 2010. LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). A pintura - vol 7: O paralelo das artes. Trad. Magnólia Costa. São Paulo: Editora 34, 2005.

de 24/01/2019 a 01/03/2019

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